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Covid-19. O caos instalou-se. Que valores prevalecem na Constituição?

Atualizado: 14 de mai. de 2021


Afinal, a Constituição legitima ou não a obrigatoriedade de quarentena?


Esta questão, submetida à análise de alguns constitucionalistas, tem originado divergências interpretativas da lei fundamental.


Por um lado, há quem olhe para a Constituição de um ponto de vista estritamente formal, recorrendo ao artigo 27.º e assumindo uma posição rígida em favorecimento da liberdade face à obrigatoriedade de quarentena.


Por outro lado, quem procure soluções, na dispersão normativa, que fundamentem a admissibilidade desta restrição. É o caso do professor Jorge Miranda, que procura dar resposta com invocação do artigo 64.º da Constituição, que versa precisamente sobre a matéria da saúde e, além do direito à sua proteção, nos diz que todos temos o “dever de a defender”.


Ambas as posições têm na sua base argumentos válidos. Mas a Constituição, enquanto lei evolutiva, dinâmica e que acolhe valores distintos, impõe um exercício interpretativo que não se esgote na estrita normatividade formal, mas que procure harmonia e conjugação dos distintos princípios presentes.


Em primeiro lugar, com exceção da vida, é preciso compreender que não existem direitos fundamentais absolutos. A própria liberdade não é exceção a esse entendimento, ainda que, para ultrapassar a rigidez do artigo 27.º, seja exigível uma fundamentação reforçada que procure justificar uma eventual cedência no âmbito da colisão de direitos. E é precisamente aí que nos parece residir o foco da discussão atual, isto é, na colisão entre o direito fundamental da liberdade e o direito fundamental da segurança, na perspetiva de manutenção da saúde pública.


Ainda que sejamos sensíveis ao valor da liberdade, compreendendo a sua fundamentalidade constitucional, democrática e humana, parece-nos que as circunstâncias atuais impõem a sua cedência excecional e temporária. Aliás, trata-se até de uma questão de bom senso da coletividade, evitando assim a requisição de condicionalismos formais extremos cuja aplicação possa levar a intrusões profundamente lesivas em matéria de direitos fundamentais.


Assumimos essa posição com base nos seguintes argumentos:


1)    “Sociedade livre, justa e solidária” (artigo 1.º da Constituição)


Na conjuntura atual, o próprio princípio da dignidade humana impõe a defesa reforçada da solidariedade coletiva; e se é dever do Estado garantir o “bem-estar e qualidade de vida do povo” (artigo 9.º, d)), é inequivocamente dever do povo materializar essa máxima de solidariedade em face de uma responsabilidade geral e partilhada;


2)     Princípio da Proporcionalidade


Com se referiu, estamos perante uma colisão de direitos, onde se procura sobrepor a segurança coletiva à liberdade individual. Isso obriga a aferir o respeito pelos critérios da proporcionalidade.


O fim é evidentemente legítimo e as medidas parecem ser necessárias, adequadas e proporcionais ao objetivo pretendido: evitar a propagação descontrolada e imprevisível de um vírus que não se resume à infeção, mas que rapidamente pode levar à morte.


E, a partir desta ponderação, podemos iniciar um curso interpretativo que, não obstante a rigidez do artigo 27.º, eleve a discussão para um plano distinto, onde se privilegia a confluência de princípios e a sobreposição necessária que se extraí da realidade concreta e palpável.


3)     Declaração Universal dos Direitos do Homem


O artigo 16.º, nº 2 da Constituição, dispõe que “Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”;

Analisada a DUDH, é imperativo invocar o nº 2 do artigo 29.º, que efetivamente nos permite relacionar o exercício dos direitos fundamentais com preocupações em satisfazer “as justas exigências da moral, ordem pública e bem-estar numa sociedade democrática”.


Desse modo se conjuga a racionalidade do argumento apontado por J. Miranda, sublinhe-se, o artigo 64,º que nos coloca, necessariamente, no plano dos deveres no que à matéria da saúde diz respeito. É importante não esquecer que a Constituição privilegia os direitos, mas também nos impõe deveres individuais e coletivos.


5)     Teleologia constitucional


A restrição específica da liberdade nesta situação, não é propriamente uma restrição que se identifique na censurabilidade veiculada no espírito da lei constitucional.


Em geral, à privação da liberdade subjaz uma censurabilidade específica, que visa a punição do agente e se materializa com obediência a uma tramitação específica, associada a uma rigidez procedimental.


No caso da Covid-19, solicita-se ao cidadão que não abandone, temporariamente, o seu lar familiar ou outro local que entenda por razoável para cumprir o período de quarentena. O que, de algum modo, não procura estabelecer uma determinação de censura, mas apelar ao imperativo de solidariedade coletiva.


Se a característica da individualidade dos direitos fundamentais deve prevalecer por via de regra, se é verdade que a liberdade se inclui naquilo que podemos designar por "direitos fundamentalíssimos"; também não deixa de ser verdade, sobretudo em face das circunstâncias concretas, que a liberdade deva ceder, a título excecional e temporário, perante valores coletivos que, em última análise, fundamentam, legitimam e materializam a próprio exercício da liberdade individual.


Parece-nos, assim, que as circunstâncias atuais não justificam a rigidez interpretativa adotada por alguns constitucionalistas. Não estamos perante uma privação cega da liberdade, nem podemos invocá-la como um "trunfo" contra o poder do Estado quando, na realidade, não é a coercividade do poder público que impõe as exigências atuais, mas a própria sociedade enquanto conglomerado, dinâmico e unido, que se depara com exigências raras de defesa e garantia de valores sociais comuns.


E é precisamente através da integração social, pela interatividade e impossibilidade de satisfazer todos os direitos fundamentais de igual modo em situações de exceção, que se deve procurar a racionalidade de prevalência de determinados valores face à excecionalidade do acontecimentos atuais.


Se o povo é soberano, é precisamente o exercício dessa soberania que a constituição invoca, impondo a convicção da juridicidade axiológico-valorativa do quadro constitucional vigente, com expressão na máxima abrangência e alcance dos princípios e normas que definimos para a convivência social que ambicionamos. À soberania popular cabe reconhecer a juridicidade dos distintos valores, reconhecer a excecionalidade vigente, e sobrepor o interesse público a uma afetação temporária de direitos individuais, incluindo a restrição necessária da liberdade.


A solução alternativa poderá passar pela invocação do estado de emergência pelo poder representativo, que obrigará a um reconhecimento forçado de valores que a própria sociedade deveria, autonomamente, reconhecer, defender e promover.

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