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Qual era a cor do cavalo branco de Napoleão? Das perguntas sugestivas na inquirição de testemunhas


A prova testemunhal consubstancia-se num meio de prova fundamental nos tribunais portugueses. Como ensinou Bentham (1825), as testemunhas são os olhos e os ouvidos da justiça, é através delas que o juiz vê e ouve o relato dos factos que virá a apreciar.


Com efeito, é um meio de prova que padece de fragilidades. Desde logo, é pedido à testemunha que elabore um relato sobre factos ocorridos no passado, num contexto que lhe é estranho e com a advertência de eventuais consequências criminais, no caso de falsidade do testemunho (v. 132.º, n.º 1, al. d) do CPP e 360.º do CP). Acrescem fatores subjetivos que podem contaminar o depoimento, entre eles: a perceção dos factos, os erros de memória, a relação da testemunha com a causa ou com os seus intervenientes.


Neste contexto, digamos, de volatilidade do depoimento, não ignorada pelo julgador, é pacífico conceber a fundamentalidade de uma estratégia de inquirição bem definida. E tanto assim é na dimensão positiva (perguntas que devem ser colocadas), quanto na dimensão negativa (perguntas que não devem ser colocadas).


No presente artigo, iremos centrar a análise na dimensão negativa das inquirições, designadamente, em torno da proibição de formular perguntas sugestivas à testemunha, conforme previsto no artigo 138.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (CPP) e artigo 516.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (CPC).


A elaboração deste artigo teve por base a construção de Guglielmo Gulotta em torno da sugestionabilidade de determinadas questões, integrando também algumas considerações que resultam da observação empírica fruto dos nossos serviços de transcrição jurídica.



 

Na dimensão negativa das inquirições, além das perguntas sugestivas, no termos do artigo 138.º, n.º 2 do CPP, cabem também as perguntas “impertinentes” ou “quaisquer outras que possam prejudicar a espontaneidade e a sinceridade das respostas”, proibições extensivas, nos termos do artigo 516.º, n.º 3 do CPC, a perguntas capciosas ou vexatórias.


Qualquer uma destas modalidades é digna de considerações particulares. Com efeito, para que mantenhamos o foco da análise, vamos reter a análise apenas às perguntas sugestivas, prima facie, pela potencialidade que têm de inquinar a valoração final de determinado depoimento pelo tribunal.


Uma pergunta sugestiva é uma pergunta que tende a sugerir a resposta à testemunha ou, pelo menos, contém elementos que conduzem à resposta desejada, prejudicando a integridade do depoimento, ou, na formulação legal "a espontaneidade e a sinceridade das respostas" (v. 138.º, n.º 2 do CPP).


Por exemplo, se o advogado pergunta à testemunha Não acha que o arguido agiu claramente em legítima defesa?”, segundo a tipologia desenvolvida por Gulotta, estaremos perante um tipo de pergunta declarativa e retórica, com um grau elevado de sugestionabilidade, pois afirma mais do que pergunta.


Se é verdade que o artigo 138.º, n.º 2 do CPP proíbe perguntas sugestivas, também é certo que elas aparentam ocorrer com relativa frequência nos tribunais. Além do mais, como já tivemos oportunidade de sublinhar, através de uma publicação no Linkedin, entendemos que se observa uma postura dissimulada do juiz, na medida em que tende a não advertir os mandatários da sugestionabilidade de determina pergunta, apesar de não a ignorar para efeitos de avaliação e valoração final do depoimento


Comecemos, então, por observar a relação entre tipologia de pergunta e o seu grau de implicação, na proposta de Gulotta, que substituímos grau de sugestionabilidade.


Eis uma tabela desenvolvida pelo autor, que transpomos numa tradução livre:

Tipo de Pergunta

Exemplo

Grau de Implicação

Determinativa

Como estava vestido o acusado?

Baixo, (i) real pedido de informações, (ii) evoca a memória

Disjuntiva Completa

A gravata do senhor Rossi era verde ou não?

Baixo, sob o ponto de vista alternativo

Disjuntiva Parcial

A gravata do senhor Rossi era verdade ou azul?

Alto, porque exclui outra possibilidade e polui a memória

Afirmativa Condicional

Não era vermelha a gravata do senhor Rossi?

Alto, porque condiciona com a expectativa de resposta afirmativa

Negativa Condicional

Não se está a confundir?

Alto, porque condiciona o inquirido com as expectativas de negação implícitas na pergunta. Assinala que o inquiridor acredita naquilo que afirma.

Declarativa e Retórica

Ela, obviamente, conhece os precedentes do senhor Rossi?

Alto, na medida em que afirma mais do que pergunta

Implicativa por presunção

Era muito agitado o ladrão?

Alto, por basear-se numa dupla conjectura (que era um ladrão e que era muito agitado)

Diferencial

O senhor Rossi tinha um automóvel pequeno, médio ou grande?

Alto, porque considera presente uma memória antes que seja verificada, induzindo a dar um conteúdo de qualquer maneira.


Do ponto de vista da designada dimensão negativa das inquirições, quais as conclusões que podemos retirar da tipologia elaborada por Gulotta?


No nosso entendimento, podemos destacar algumas considerações preliminares, que, no essencial, assinalam os méritos que reconhecemos à construção do autor, colocando em "xeque" a prática judiciária dos nossos tribunais.


Passamos a enumerar essas considerações:


  1. A construção de Gulotta é, de facto, bastante interessante e pertinente, na medida em que abarca um conjunto amplo de questões suscetíveis de sugestionar as respostas do inquirido;

  2. Muitas das questões, exemplificadas pelo autor, aparentam ser praticadas com relativa frequência nos tribunais portugueses;

  3. Nesse sentido, ou concluímos pela excessiva amplitude da construção de Gulotta, não enquadrável na nossa prática judiciária, ou então concebemos os méritos desta construção e reconhecemos que são cometidos erros nos nossos tribunais;

  4. A construção de Gulotta é apelativa. Além de ser desenvolvida na base de uma estrutura lógica e fundamentada, exemplificada na tabela que analisámos supra, o autor introduz outros elementos na sua análise: as diferentes fases do interrogatório (examination, cross-examination), a gramática das implicações, e até mesmo estudos empíricos sobre a sugestionabilidade de determinadas questões.


Estas são considerações muito gerais, que, no entanto, visam sensibilizar para a circunstância de serem formuladas perguntas sugestivas, nos tribunais portugueses, com maior frequência do que seria de esperar.


As considerações feita até aqui, de caráter mais geral, remeteram-nos à necessidade de responder a três questões:


1. Será que as perguntas excessivamente pormenorizadas têm a potencialidade se tornarem sugestivas?
2. A dimensão teórica e a dimensão prática da sugestionabilidade são uma e a mesma coisa?
3. Será que a proibição de perguntas sugestivas é aplicável ao julgador? E se sim, quem controla o julgador uma vez que é a ele, nos termos da lei, que cabe dirigir a audiência?


É sobre elas que falaremos na segunda parte deste artigo.


Se quiser acompanhar a publicação da segunda parte deste artigo, envie-nos um convite no LinkedIn, onde daremos nota logo que o artigo for publicado no blog.



 
 
 

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