Qual era a cor do cavalo branco de Napoleão? Será que o julgador pode formular perguntas sugestivas? #2
- Luís Pedro Monteiro
- 7 de fev. de 2024
- 7 min de leitura
Atualizado: 8 de fev. de 2024
No passado mês de dezembro, escrevemos um primeiro artigo sobre perguntas sugestivas, no qual transpusemos a tabela desenvolvida por Gulotta em torno da tipologia de perguntas sugestivas e o seu grau de sugestionabilidade.
Hoje vamos concentrar-nos na (in)aplicabilidade da proibição de formular perguntas sugestivas ao juiz, focando-nos essencialmente na perspetiva jurisprudencial, desde logo na decisão da Corte Suprema di Cassazione italiana, datada de 2020, que inclusivamente mereceu um artigo de comentário elaborado por Gulotta(1).
Em termos genéricos, veio o Supremo Tribunal italiano esclarecer que a proibição de formular perguntas que prejudiquem a sinceridade das respostas, num duplo sentido, de perguntas sugestivas – que tendem a sugerir a resposta ou a fornecer informações necessárias para uma resposta conforme ao desejado – e de perguntas prejudiciais – destinadas a manipular a memória da testemunha, através de informações incorretas ou suposições falsas – , deveria ser aplicável ao juiz.
Até então, vigorava um entendimento distinto, em que a jurisprudência argumentava que a proibição de formular perguntas sugestivas não era aplicável ao juiz, a quem caberia o poder de fazer qualquer pergunta com vista ao apuramento da verdade, apenas excecionando a formulação de perguntas prejudiciais (Cass. Pen., Secção III, n. 27.068, 20/05/2008).
E em Portugal, será que podemos fazer semelhante raciocínio? Noutras palavras, será que a proibição de formular perguntas sugestivas deve também ser aplicável ao juiz português?
Será esse o foco da nossa análise, concentrando-nos apenas nas perguntas sugestivas, com exclusão das prejudiciais, além de reservar a análise em torno dos aspetos que entendemos mais relevantes, pois a natureza do presente artigo obriga-nos a um esforço de síntese.

Da colocação de perguntas sugestivas pelo juiz: uma prática verosímil?
Sabemos que o poder de direção da audiência de discussão e julgamento cabe ao juiz. No exercício desse poder, cumpre-lhe identificar e impedir “a formulação de perguntas legalmente inadmissíveis” (323.º, alínea f) do CPP), como é o caso das perguntas sugestivas. Nesse sentido, o juiz opera como garante do cumprimento das regras de inquirição, previstas no artigo 138.º do CPP (cfr., Ac. TRP, 09-10-2019).
Acresce que o juiz, enquanto terceiro ao processo, desinteressado e imparcial, por via de regra não colocará – ou, pelo menos, é improvável – perguntas que contêm elementos de sugestionabilidade. Será, portanto, mais ou menos claro que a lei comete esta responsabilidade de garante ao juiz com base no pressuposto de que a formulação de perguntas sugestivas tem na sua base algum interesse subreptício, que o juiz não terá.
A verdade é que isso nem sempre acontece. A título de exemplo, demos nota de uma situação real, através de uma publicação no LinkedIn, em que o juiz questionava uma testemunha nos seguintes termos: "Entende que o arguido agiu de forma irresponsável, não é assim?"
Do nosso ponto de vista, trata-se de uma pergunta sugestiva, pois mais do que perguntar o juiz afirma, sugerindo que a resposta vá de encontro à afirmação contida na aparente pergunta, ou seja, que a testemunha confirme que o arguido agiu de modo irresponsável. Pasme-se, a confirmação acabou por se verificar. Entendemos assim, nessa mesma publicação, que a questão colocada violava as regras de inquirição, conforme disposto no artigo 138.º, n.º 2 do CPP.
O Supremo Tribunal italiano, no âmbito da decisão que mencionámos inicialmente, parece evidencia-nos um entendimento rígido no que concerne às perguntas sugestivas.
Entre outras perguntas analisadas, eis um exemplo do posicionamento assumido pelo tribunal:
«Você lembra-se que tinha denunciado que em determinado momento essa pessoa, um dia que estavam no carro, pegou na sua mão… e colocou-a nas suas partes íntimas?»
O Supremo entende tratar-se de uma pergunta sugestiva, pois contém a resposta que se pretende sugerir e o juiz apresenta o facto como estabelecido.
De modo que o entendimento sobre a necessidade de existir algum interesse, ou mesmo um acordo prévio com a testemunha para formular perguntas sugestivas (v.g., Cass. Pen., Secção III, n. 4.721, de 12/12/2007), do qual se excluiria o juiz, parece ter sido ultrapassado.
Segundo Paolo Ferrua, mencionado por Gulotta, o fundamento da aplicabilidade desta proibição ao juiz reside na relação de hostilidade que se pode gerar entre este e o interrogado.
Acolhemos o entendimento de Ferrua. Mas iríamos mais longe quanto aos fundamentos que podem estar na base de perguntas sugestivas colocadas pelo juiz. Entendemos que elas podem resultar não apenas de qualquer intencionalidade direta ou eventual relação de hostilidade, mas ser fruto da precipitada inclinação decisória, que poderá, até de modo inadvertido, resultar na formulação questões objetivamente sugestivas (ou prejudiciais).
Aplicabilidade da proibição ao julgador: uma questão de ratio legis?
A nossa lei processual prevê que o juiz impeça, no exercício da sua posição de garante, a formulação de perguntas sugestivas, como assinalámos anteriormente. Com efeito, aparentemente é omissa quanto à possibilidade delas serem desencadeadas pelo próprio juiz. Acresce que a jurisprudência nacional é parca sobre esta matéria – pelo menos que seja do nosso conhecimento.
A Relação do Porto já se pronunciara sobre o tema, mas com alguma reserva, digamos assim. Por exemplo, perante a invocação de um mandatário que o tribunal a quo tinha formulado perguntas sugestivas, entendendo até que punham em causa o princípio da presunção de inocência, veio a Relação dizer:
«É consabido, no entanto, que no calor da discussão pode surgir a tentação de se formularem questões que têm subjacente, deixam implícito ou expresso mesmo, o entendimento de que o arguido é culpado (negrito nosso). (…) Se, não obstante tais perguntas forem formuladas – por quem quer que seja, maxime, pelo próprio Tribunal – o arguido tem o direito e o seu defensor o dever, de se insurgir contra tal procedimento, arguindo a irregularidade do interrogatório» (v. Ac. TRP, 04/11/2009, Rel.: Ernesto Nascimento).
Deste trecho, podemos retirar conclusões importantes. Desde logo, podemos observar que existe uma certa consonância da jurisprudência portuguesa – pelo menos da Relação do Porto – com o posicionamento de Ferrua, no sentido de que uma eventual situação de hostilidade pode efetivamente levar à formulação de perguntas inadmissíveis, inclusivamente pelo juiz.
A segunda constatação é que o mandatário tem o dever de reagir perante situações desta natureza, sobre o qual falaremos adiante.
Porém, apesar de neste recurso o mandatário ter invocado a formulação de perguntas sugestivas pelo tribunal a quo, a Relação não faz uma única referência expressa nesse sentido, limitando-se a asseverar que as perguntas não devem pôr em causa o princípio da presunção da inocência. O certo é que não existe necessariamente uma relação direta entre perguntas sugestivas e presunção de inocência; aliás, atrevemo-nos a declarar que, por via de regra, não existe sequer relação alguma.
Noutra situação, em que o recorrente também invocara a formulação de perguntas sugestivas pelo tribunal a quo, veio a Relação de Lisboa dizer apenas: «(...) a apreciação de tal questão não tem agora lugar, uma vez que a existir teria de ser arguida no próprio ato», dado que o regime de invalidade para a violação das regras se inquirição se consubstancia na mera irregularidade, nos termos do artigo 123.º do CPP (v. Ac. TRL, 28/01/2010, Rel.: Maria do Carmo Ferreira).
No fundo, ainda que se admita a possibilidade dos juízes colocarem perguntas legalmente inadmissíveis, que não devem ser permitidas, parece existir um especial cuidado em admitir que os juízes também formulam perguntas sugestivas, que terá na sua base uma perceção ainda muito viva sobre a necessidade de existir algum interesse subjacente à causa, que não se pode imputar ao juiz.
Daí que faça todo o sentido as palavras do Supremo Tribunal italiano, que entendeu ser um erro conceber uma relação de dependência entre a formulação de perguntas sugestivas e os interesses subjacentes à causa. Aliás, o tribunal veio mesmo argumentar que não proibir a formulação de perguntas sugestivas pelo juiz, levaria ao absurdo das regras fundamentais para assegurar um testemunho isento falhassem precisamente onde são mais necessárias, pois a fragilidade e sugestionabilidade tendem a aumentar quando a testemunha é inquirida pelo juiz.
Já do ponto de vista normativo, se é certo que a nossa lei processual não prevê expressamente a aplicabilidade desta proibição ao juiz, também é certo que não diz o contrário. Ao analisarmos as regras de inquirição previstas no artigo 138.º do CPP, vemos que nos termos do n.º 2 deste artigo apenas se dispõe: «Às testemunhas não devem ser feitas perguntas sugestivas (…)».
Por conseguinte, parece-nos que da interpretação jurídica resultam razões ponderosas, reforçadas pela ratio legis, que dissipam quaisquer dúvidas que possam subsistir quanto ao critério de aplicabilidade geral desta proibição, ou seja, da sua aplicabilidade tanto a mandatários, quanto a procuradores ou juízes.
Quid custodiet ipsos custodes?
Questão diversa de reconhecer a aplicabilidade da proibição aos tribunais, é saber como fazer o controlo eficaz dessa proibição nestes casos. No famoso brocardo de Juvenal: Quid custodiet ipsos custodes (Quem vigia os vigilantes)?
A resposta não é simples. Do ponto de vista teórico poucas dúvidas existem: caberá essencialmente ao mandatário identificar e requerer ou protestar ao verificar que o juiz está a formular perguntas sugestivas. Do ponto de vista prático, existem certos constrangimentos que não devem ser ignorados.
Desde logo, a (negativa) reação do juiz. Se é verdade que não podemos em abstrato conceber a intolerância do magistrado perante qualquer confrontação com respeito às questões por si colocadas, digamos que as regras da experiência parecem demonstrar que o juiz não costuma ficar especialmente agradado quando o advogado coloca em causa as perguntas por si colocadas às testemunhas.
Com efeito, não obstante a potencial rota de conflito que se pode gerar entre o juiz e o mandatário, este último, no exercício das prerrogativas profissionais, prima facie a liberdade e independência, além da melhor representação possível dos interesses do seus constituinte, não pode ficar inerte.
Deverá então, sem mais considerações, reagir de imediato perante a observação de que o juiz formula perguntas sugestivas, optando assim pela via do confronto? Ou, por outro lado, deverá fazer uso estratégico dos elementos de sugestionabilidade, que podem, eventualmente, demonstrar a inclinação decisória do tribunal?
Qualquer uma das vias, seja a do confronto ou a do uso estratégico dos elementos de sugestionabilidade, será naturalmente válida. Em qualquer caso, exigirá sempre uma ponderação concreta.
A via do confronto, impõem-nos uma análise crítica sobre o atual regime de invalidade por violação das regras de inquirição - que será o da mera irregularidade, nos termos do artigo 123.º do CCP, como vimos -, conjugar essa análise com os mecanismos ao dispor do advogado e com o eventual preenchimento dos pressupostos de aplicação da taxa sancionatória excecional; além de, numa fase posterior, existir o risco de o tribunal de recurso desvalorizar a argumentos neste contexto.
Já a via do uso estratégico dos elementos de sugestionabilidade, que nos parece ser a via mais comum, seja por uma questão de estratégia ou efetivamente pela conceção de que o confronto será mais prejudicial do que benéfico, naturalmente que também exige considerações particulares sobre as vantagens/desvantagens.
Ao leitor eventualmente interessado no desenvolvimento destes últimos tópicos, sugerimos que nos deixe um comentário, aqui ou no LinkedIn, dentro da nossa disponibilidade, teremos todo o gosto em desenvolver esta matéria – que não cumpre avançar por ora, dada a já longa extensão do presente artigo.
LPM
(1) - Pode aceder ao artigo de Guglielmo Gulotta, «Divieto di domande suggestive anche per il giudice» (em italiano), neste link; pode, também, aceder à decisão do tribunal (em italiano), neste link (fonte: https://www.sistemapenale.it/; último acesso: 04-02-2024)
Artigo muito interessante. Continue.